Lendo os amigos Sallié Oliveira e Felipe Gomes
É muito bom ler os amigos e poder discutir sobre minha leituras e suas visões.
Como é bom ler amigos! Essa semana comecei a leitura de Guerra no corpo do homem. Os poemas são do Sallié Oliveira, quem conheci durante a FLIP de 2022, e transbordam uma intensidade de sentimentos que perpassam pelo eu-lírico.
No poema III, por exemplo, temos apenas este dístico, que demonstra como as relações podem ser vistas como bombas, como momentos de destruições, e, por isso, marcam e geram escombros.
III
a praça aonde nós fomos juntos
jamais será a praça aonde eu fui sozinho.
Outras guerras se passam dentro do corpo do homem. No poema XVII vemos a guerra contra a carência afetiva, que — numa possível leitura — tem a ver com a solidão dos homens gays e o uso de “aplicativos de pegação” para saciar esse vazio. Ao não estar mais sob seu olhar, a batalha parece ganha. Mas, na verdade, sabemos que, intermitentemente, ela ressurge tão intensa quanto as vezes anteriores.
XVII
um homem se oferecer para vir me ver
deixar-me menos só
passaria de carro
estacionaria na rua de trás
buzinaria uma vez
porque eu estava só
porque eu queria ver avenidas desertas
porque eu queria ver a rua de trás
eu disse ao homem
grande pedra em uma caixa com rodas
que de repente eu já não precisava
o prazo se esgotara
estar só havia feito a curva
eu não poderia mais ser visto.
Mais guerras são traçadas no livro: guerra do desejo, guerra das opressões, da depressão, da morte. Ainda não conclui minha leitura, mas estou gostando muito de ler a poesia do Sallié depois de tantas conversas. Costumo separar o eu-lírico do autor, mas é impossível não relacionar certas experiências narradas às experiências sobre as quais discutimos pessoalmente.
Outro amigo cuja leitura conclui há algumas semanas foi o Felipe Gomes. Éramos amigos do Instagram há uns 2 anos, mas nunca havíamos conversado pessoalmente até a última FLIP. Li seu primeiro livro, Alma na casa sozinha, e compreendi ainda mais a figura calma do autor.
Os poemas do livro seguidamente usam imagens da cidade para se situar. Não é uma descrição fiel, muito menos visa levar o leitor pela mão a um passeio, mas uma artimanha usada para falar sobre subjetividades e metafísicas.
A chave para o segredo pode estar no seguinte poema:
do banco da aleia frei leandro
espero alguma revelação
poética
andando pelo jardim botânico
(tendo ânsias de cantos meus,
que sempre busco, em cada lugar belo)
mas encaro meu ser prosaico
no âmago profuso da natureza
minha aspereza
A ânsia por seus cantos cada vez que encontra algo belo é um ótimo fio condutor para os poemas do livro. Separei dois outros para ilustrar meu ponto:
nossa senhora da penna
subi a pedra do galo
vi mar
vi lugares do bairro como
pecinhas de lego
desci e
me senti miniatura
circulando na maquete
observado pelo gigante
que tinha sido
—
Sky fly
e na descida da linha vermelha
o Rio se alçou
num fade out cinza cintilante
de fim de tarde nublado
com brinquinhos de luzes prematuras salpicados
diante do portal de concreto
num start de enredo de aventura,
de sonho fantástico
deus, como não ser intenso
numa cidade dessas
No fim das contas, achei que ambos livros compartilham de uma certa intensidade e a vontade de vida. No livro do Sallié, essa “Vontade de Potência”, como diria Nietzsche, transforma-se em guerras internas e externas, degladiando e sendo degladiado pelos afetos. É isso que o move para frente.
Já no livro do Felipe, há um fator mais contemplativo, que olha o mundo com um pouco mais de distância. E, para atingir isso, é necessário que a alma esteja mesmo sozinha na casa.
Para finalizar, um poeminha erótico de cada livro:
XXXV (do Guerra no corpo do homem)
ele murcho encolhido
pequeno imóvel
frágil intocado
atirado sem fôlego para o lado
inativo e cansado
amuado desajeitado
quero todo
quero tudo.
—
Baixo (do Alma na casa sozinha)
no fundo,
gosto
do que me faz mau
aquilo que machuca
endurece
meu pau
Ainda há outros amigos e conhecidos do Instagram na fila de leitura e espero, em breve, compartilhar a experiência aqui com vocês.
Muito bom revisitar este texto agora tendo conhecido você e o Sallié pessoalmente. Em breve começo a leitura de "Guerra no corpo do homem" e retorno aqui pra compartilhar as minhas impressões.