Erótico ou pornográfico? Qual a diferença?
Por muito tempo tive a concepção que o erótico falava sobre sexo de maneira subliminar, dando pistas, usando palavras indiretas; e que o pornográfico era direto ao ponto, sendo escrachado.
Por muito tempo tive a concepção de que o erótico falava sobre sexo de maneira subliminar, dando pistas, usando palavras indiretas; e que o pornográfico era direto ao ponto, sendo escrachado.
Depois de ouvir um episódio do podcast Página Cinco e outro do podcast 451Mhz, aprendi com a professora Eliane Robert Moraes que a diferença entre eles está no trabalho com a linguagem, e não no teor explícito. Isso quer dizer que é possível descrever cruamente “a coisa”, mas ainda ser erótico. Ou seja, ser pornográfico não é só escrever palavrões, mas os escrever sem propósito literário.
No caso de O limiar das fendas, livro de estreia de Douglas Laurindo, há um trabalho de linguagem interessantíssimo que se sobrepõe ao uso de imagens mais diretas.
Aparecem no texto palavras como cais-testículos, navegante-língua, vegetação-glande e outras expressões e analogias bem delineadas como, por exemplo, as presentes nos versos do poema G, que descreve uma cena de sexo com gael:
G
o quarto é sismo:
entre mim e gael
[tudo se opõe,
nada se desfaz].
ele, mão dentro da minha cueca,
silencia tempestade que quebra o copo,
copula entre os cacos do corpo,
cola com o suor a nossa boca aflita.
o quarto é cemitério:
os músculos prendem
e minha pequena ceifadora geme.
gael faz de mim eurídice invertida:
em vez de sumir, depois da vã promessa,
reencarno sempre, puído, frêmito.
é a língua dele na minha nádega
que me impulsiona a saquear caronte.
subo à terra das almas lânguidas,
enfrento o pão que dante amassou
para que eu me repita, me degluta,
me desate e ele me ame.
gael é minha sede, em cujo peso,
nas costas do animal de carga que grita,
se contorce, faz acrobacias e dedilha,
acredita-se ser a sorte de um andarilho.
gael é seis, e eu nove.
anticlássico e nefelibata,
aceito essa caixa de duas bocas
e a religião que ela assegura.
Observam-se várias referências à mitologia grega. Caronte era o barqueiro de Hades. Como pagamento por seus serviços, os gregos antigos colocavam uma moeda na boca de seus mortos.
Quando fala de Eurídice, uma ninfa mordida por uma cobra e levada ao submundo. Hades permite que ela volte ao mundo dos vivos, mas Orfeu, seu marido, não pode olhar para trás enquanto não chegar em casa. Esse trato é descumprido e ela volta ao mundo dos mortos, ao cemitério que é o quarto.
Os trechos “nas costas do animal de carga que grita” e “gael é seis, e eu nove” ficam claras as metáforas ao sexo, mas mesmo assim são encaixadas no contexto geral de forma branda e trabalhada.
Nos outros poemas, além da mitologia grega, há analogias, paródias e referências a diversos poetas. Exemplos: o último poema da primeira parte, intitulada “BICHAS, RISO & FURO", é uma sátira de Drummond: "Quando nasci, um anjo padrão/ desse de Instagram/ disse: vai, mona! ser oprimida na vida". E, na segunda parte, "GAEL, AMOR & OUTROS TERRITÓRIOS", o poema Jogo perigoso faz referência a Adília Lopes.
Em suma, um trabalho muito bonito e erótico. Um ótimo livro de estreia.
Outra leitura que contém muita eroticidade e conclui recentemente foi a de Tudo é rio, de Carla Madeira. Um romance rápido, mas com muito trabalho de linguagem, escrito com maestria.
Conta uma história com várias personagens cujos laços se bagunçam e se constroem ao longo do livro. Havia tempos que não lia um livro que me deixasse tão vidrado. Durante a leitura, evitei ler quando tinha pouco tempo ou estava distraído. Queria desfrutar integralmente.
A linguagem é direta e as frases curtas, mas trata de tamanha subjetividade humana que não seria capaz de explicar. Não é que um personagem é complexo. Todos são.
Uma das personagens é puta. Prefere esse nome. O livro, inclusive, começa assim:
Puta. Não tem outro nome para Lucy. De profissão ela era puta mesmo. Trabalhava num puteiro, vivia num puteiro. Mas não era só por isso. Se só por isso fosse, podia outros nomes mais respeitosos, como meretriz ou prostituta. Era puta e pronto, que essa palavra, a seco, carrega um xingamento, que quem conhecia Lucy queria logo desabafar.
A forma com que o texto foi escrito demonstra não só adjetivos de Lucy (prostituta), mas sua postura (decidida: era puta e pronto) e como as pessoas a enxergam (queriam chamá-la de puta).
Neste outro trecho, é narrado um beijo entre Venâncio e Dalva, outros personagens:
Os lábios dele tocaram de leve nos lábios dela, como o pouso de mil borboletas brancas. Tomaram uma distância miúda, quase invisível, e se encostaram de novo, um vai e vem sereno embalou os dois aumentando aos poucos a vontade de demorara ali. As línguas se tocaram macias, se afastaram tímidas, se entregaram a uma brincadeira de dançar juntas, explorando o desenho da boca, tocaram nos dentes perolados, venceram todas as distâncias, reconheceram texturas, tomaram gosto. Um molhando o outro com suas águas boas, um dentro do outro naquele primeiro beijo de parar o mundo. Os olhos fechados num escuro quente.
Esse parágrafo é vidrante. As escolhas de palavras vão lembrando sexo, apesar de estarem se referindo à forma com que o beijo se deu: vai e vem sereno, tocar macio e afastar tímido, a vontade de se demorar ali, molhando com águas boas, dentro do outro, escuro quente. Mexeu tanto comigo esse parágrafo que a minha primeira leitura de “tomaram gosto” foi de “tomaram gozo”.
E o mais legal: esse trabalho percorre o livro inteiro, que é muito bem escrito, bem pensado e bem executado. Foi a minha primeira leitura de 2023. Tenho certeza de que será a melhor, e por isso recomendo muito.
Um abraço, e até a próxima!